Livre trânsito
A
possibilidade de ser o que sou, mas também ser Outra flutua entre o assustador
e o encantamento. Luz e trevas caminham lado a lado e, às vezes, se cruzam,
resultando tons cinza como madrugada de filme em preto e
branco. É nessa sobreposição de tons que me acho e me encontro e encaro o
espelho. Mas a imagem refletida não traz o rosto conhecido. Traços duros, olhos
acesos, nariz adunco, queixo proeminente e um esgar de maldade no canto
distorcido da boca. Completamente em transe me deixo levar e atravesso o limiar
tênue que divide o bem e o mal. A Outra tudo pode, porque não se submete,
porque não peca, porque não teme. E, por assim ser, transita plácida pelo
submundo do crime premeditado. O punhal afiado, o corpo inimigo, o doce
encontro dos dois... o jorrar do sangue... o tapete encharcado... o olhar sem
vida... o prazer do dever cumprido. Fome! O levantar e descer do punhal resulta
em fome avassaladora.
A luz incide
na superfície do espelho indicando o fim do transe. Agora, a moldura encerra
quadro com cena horripilante de corpo, sangue, tapete, punhal. Onde o espelho?
Onde a Outra?
Abro a
geladeira e me abasteço com o que há de melhor. O suor teima em escorrer pela
face. Com gesto suave, deslizo os dedos para deter as gotas que mancham minha
mão e o branco guardanapo de um vermelho vibrante...
Maria Ivone
Pandolfi
10/05/2012
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