O Bem e o Mal: um enigma para a humanidade.
Mais uma tarefa nos é proposta: refletir sobre o bem e o
mal. Muitas ideias me vêm à cabeça num turbilhão e me vejo diante da
dificuldade em organizá-las e me pergunto: “Valerá a pena tentar”?
Além do mais já estou próxima em anos de uma nova década e
confesso que sentimentos contraditórios de dúvida, tristeza, angústia e alegria
me invadem. Assim, alegria pela minha caminhada até hoje, com tropeços e erros como todo ser humano, mas com muitas
coisas boas e muitas realizações. Por outro lado, penso no futuro e me
entristeço, ( Será a visão da morte, como escreve Lya Luft, me espreitando,
palitando os dentes e preparando o bote? E continua a escritora... “Quando
trabalhamos ou nos divertimos, ela passeia pelas praças, sobe nos telhados mais
altos e aponta aqui e ali seu dedo ossudo: este, esta, aquela, as várias num só
golpe”) e me pergunto tristemente: estarei na próxima leva?
Mas continuo vivendo, fazendo o bem e evitando praticar o
mal e me pergunto como no bolero antigo: “Hasta quando? Hasta quando?”.
Mas deixando de lado perguntas para as quais não tenho
absolutamente respostas passo a tentativa de refletir sobre o angustiante
dilema entre o bem e o mal.
Não se trata de discutir se o mal existe. Isto é um fato.
Trata-se de defini-lo. Eis aí o foco do problema, como conceituá-lo?
Platão, filósofo ateniense do IV séc. A.C, discípulo de
Sócrates, assim se exprime: “O Bem é uma ideia ou forma (do grego eidos) que se
encontra acima do intelecto humano, tem existência independente da
multiplicidade das coisas existentes no mundo e é participada de modo
imperfeito por elas (Ramos, p. 14) . Coisas que existem no mundo sensível são
cópias dessas formas que são a realidade em si.
Continuando o pensamento de Platão: “O Bem é a finalidade do
homem que quer atingir a sabedoria. O contrário dele, o mal, reside na busca da
satisfação dos sentidos. O mal jamais habita na esfera celeste junto aos
deuses, mas sim na natureza humana mortal. O corpo é a raiz do mal pois é a
fonte dos desejos insensatos, paixões, discórdias, inimizades,guerras, loucura,
etc.” (idem p. 15)
Por outro lado, líderes religiosos usam, muitas vezes, nas
suas pregações, a figura do ”demônio como a personificação do mal, responsável
por todos os males e dotado de poderes incalculáveis para executar a maldade na
sociedade”. (idem, p. 10) Durante a vida terrena haverá sempre a luta entre
Deus e o demônio e no final dos tempos os pecadores serão condenados e os
justos recompensados com a vida eterna e feliz.
Para os maniqueístas (seguidores de Mani, nascido na Pérsia
no sec. III), o homem tem uma natureza boa e outra má em constante luta e no
final dos tempos o Bem vencerá o mal.
Santo Agostinho, seguidor de Platão, embora já
cristianizado, se coloca contrário às ideias maniqueístas negando o mal
ontológico. Para ele, o mal é nada mais
que ausência ou carência do Bem. O homem, criatura de Deus, possui o
livre-arbítrio que Santo Agostinho entende como bem, que o aproxima do mundo
racional e elevado e de Deus, que através da graça, faz o homem escolher o bem.
“Há no mal um movimento de distanciamento e perda do homem em relação a Deus,
movimento este que é perda do bem.” (idem pag. 32) É o homem que se aproxima
das coisas inferiores, das paixões, da vaidade e do orgulho.
E assim Santo Agostinho afirma que o mal não tem valor
ontológico, sendo apenas a ausência do Bem, ou seja, “não há um mal existente
por si só, que teria tanto grau de ser quanto o bem.” (idem pag. 33)
Essas ideias colocadas resumidamente no presente texto
mostram algumas posições, que tiveram, nos séculos posteriores, vários
desdobramentos.
É interessante abordar ainda a visão do mal nos tempos
atuais. Assim, Zanoni, autor já citado, buscou ainda a ideia central de uma
filósofa judia, Hannah Arendt, que aborda o tema do mal no seu livro “Eichman
em Jerusalém: um relato da banalidade do mal”. Como já é de domínio público,
Eichman, político alemão, colaborador do nazismo e réu acusado de crime de
perseguição e morte de judeus, foi julgado e condenado à pena de enforcamento.
Arendt, enviada pela revista “The New Yorker” para acompanhar o referido
julgamento, se viu em uma posição bastante difícil e desconfortável. Sobre
Eichman, obviamente, pesava todo o ódio, desprezo e desejo de justiça de um
povo massacrado pelo regime ditatorial e impiedoso de Hitler principalmente
contra os judeus e que até hoje nos causa horror, tristeza e “espanto”. Esta
palavra foi por mim retirada de um depoimento dado por Ferreira Gullar à
revista Veja (26/9/2012). Dentre os assuntos abordados, ele enfatiza que só
consegue escrever poemas a partir de um espanto diante da vida; a poesia não
nasce somente pela vontade da gente, ela nasce de algo que não se sabe, mas nos
provoca. A tudo isso ele denomina “espanto”.
Apesar de tudo, Arendt sabia que seu relato não deveria ser
conduzido pelas emoções somente, mas também pela razão. Seu dilema se
centraliza na questão: do que Eichman seria culpado? Da morte de seis milhões de judeus ou de
alguns que ele prendeu e levou para morrer? A partir dessas perguntas, Hannah
Arendt procurou respostas nos próprios atos praticados pelo réu em questão.
Na avaliação do comportamento de Eichman, Arendt usou a
palavra banal para se referir ao mal cometido por ele, isto é, sem profundidade
e com ausência de enraizamento em alguma maldade. E assim entende: “o que
Eichman tinha de maldade estava nas suas ações e não na sua essência” (idem
pag. 39), recusando assim a ideia do mal ontológico.
Sobre o pensamento de Arendt, Hélio Shwartsman, no jornal
Folha de São Paulo de 13/05/12, escreve um artigo baseado em um experimento
conduzido pelo psicólogo Philip Zimbardo em 1971, que procurou mostrar o
comportamento de pessoas que estariam supostamente “presas”. Algumas pessoas se
apresentaram voluntariamente diante do psicólogo da Universidade de Stanford
para serem submetidas à pesquisa. Por sorteio, um grupo ficou com o papel de
guarda e o restante com o de prisioneiro. Os “guardas” deveriam apenas assustar
“os prisioneiros”, mas o experimento saiu de controle e os “guardas” foram se
tornando cada vez mais cruéis e os “prisioneiros” aceitando cada vez mais os
castigos e as humilhações sofridas. Basta uma pressãozinha do grupo para uma
pessoa normal se enfronhar na barbárie e julgá-la a coisa mais natural do mundo.
É o que Hannah Arendt chamou de banalidade do mal.
Como vimos através de rápidas pinceladas sobre o tema em
questão, muitas dúvidas ainda persistem e não se chega a uma conclusão que
satisfaça plenamente. Certeza mesmo não existe quando nos referimos à vida na
sua fluidez.
Penso que, instintivamente, sabemos que o mal e o bem
existem como ações, como comportamentos, julgados de acordo com regras morais,
políticas, religiosas que variam de acordo com a época histórica e o grupo
social. Ricoeur, por exemplo, não reconhece no homem uma essência má, e sim uma
fragilidade que possibilita ao homem a agir mal. Para ele, o mal surge
acidentalmente, no decorrer da História.
Todo o mal praticado resulta no mal
sofrido por alguém. É o mal moral e por isso quem o praticou deve ser
castigado. Antes de buscarmos a explicação fora de nós (deuses ou o diabo)
devemos atuar ética e politicamente contra o mal.
Celia